quarta-feira, 19 de março de 2014

Bosta

Hamaya Hiroshi - Woman planting grice

























Encostou-se à porta e olhou na chuva.
- Espere um pouco. Deixe que pare.

- Sim - respondeu-lhe - ficarei encharcada. E aqui... cheira bem. Cheira a infância.  
- A crianças?
- Não... A infância. A livros. A pó de livros e alcatifa. Vermelha. 

Ver partir. E ficar. Ver partir. E ficar. É mais fácil partir ou ficar? Quem fica quer partir? E quem parte quer ficar? Não sei. Partiu.

Casaco de tweed castanho. Sim, sabia o que era tweed. Sempre o veria de casaco de tweed castanho. Porque sim. Agora e sempre. Porque ficamos sempre com a recordação das mãos? A boca esquece-se, os olhos esfumam-se, o sorriso vai-se, o olhar desaparece e as mãos ficam. Sempre. Sempre as mãos.

É difícil dar notícias quando... quando há saudades e emoções. Quando racionalizamos e vemos que o barco já partiu. Foi. É passado. E o coração é grande. Grande. E bate. Bate. 

A estante fazia uma curva e preenchia as duas paredes por detrás da secretária. Era nela que estavam os livros menos lidos da casa. Talvez os de menor valor literário. Os oferecidos pelo jornal. Os encostados a canto. Os que não interessavam. O corpo deitava-se ao comprido no chão. Sobre a alcatifa vermelha eram empilhados os livros que repousavam na estante. Abertos. Folheados. O cheiro. Poesia. Fraca poesia. "John um chauffeur russo". Filosofia. História. Guerras. Batalhas. Cartas comerciais. Livros em latim com capas em couro carcomido. O cheiro. A mistura pó, alcatifa e a intensidade do papel. 
John um chauffeur russo. E a inexplicável memorização de lixo. 

Colocamos revistas nos pés e patinamos. 

- Deixe-se ficar.
- Sim fico. Ou molho-me.

Hoje é dia do pai. Pensei em oferecer-lhe algo. Uma jarra de plástico amarela com decorações de flores cujas pétalas possuem led's de cor rosa. Quando erguida toca a Toccata et fuge do Bach. Desafinada. Ruidosa. Desagradável. Hoje é dia do pai. Ofereço à sua mulher uma lápide com o nome dele. Ela vai gostar. Eu não visito corpos mortos.

domingo, 8 de setembro de 2013

Moldura dourada

Gerhard Richter - Drei Geschwister

























A minha mãe aquece peras no microondas. Gosta de comê-las mornas. Semi-transparentes. Maduras a libertar o suco. O meu pai pedia para lhe aquecerem o pudim. A água. O arroz doce. Os iogurtes. A garganta sofria. Dizia.

Eu sonho em dormir em camas de princesas-ervilha, subtituindo os colchões por mantas e edredons que me cubram o corpo. Metros e metros de roupa. Metros e quilos. E eu por baixo. Quente. Metros, a peso sobre mim. Sentido o esborrachar. Quente. A arder. Dormente.

O frio liga-me aos velhos. Tal como a morte. Sentir que neles há sabedoria para aceitá-la. Algures. Num recanto do pensamento. Do ser. Querer pensar que assim é. Que já ponderaram e chegaram a conclusões que a mim ainda estão interditas. Sem perguntas. Sinto. Como enfrentar os dias? Como enfrentar os últimos dias? Saberão que são os últimos? Como estar presente quando o futuro é curto?

Sentava-me no banco tosco de madeira feito provavelmente de um toro roubado a uma linha férrea. Ladeada pelos três envolvia-me em histórias. Em mãos calejadas. Em mãos de veias salientes e unhas escuras e amarelecidas. Em mãos de olhos e pele gastos pela vida. Mãos que agarravam nos cajados de madeira trabalhados à navalha. Mãos que se faziam sentir pelo meu olhar. Criaram-me memórias. Mãos que se faziam sentir quando me levantava e recebia bofetadas nas costas. Chapadas nas pernas. Cajadadas no rabo. “Vai. Vai que se faz tarde.” O afecto demonstrado por um sentir forte. Na ausência de palavras. Na ausência de retórica. Na ausência de saber.

Emprestavam-me o cajado para que eu à semelhança deles pudesse mover as pedrinhas no chão. Com a ponta do cajado empurrava uma pedra para junto de outra. Sem método ou pensamento. Escavava buracos que depois tapava. Ou não. Professores do nada. Do fazer nada, ocupando-nos com qualquer coisa. Aluna das pequenas coisas que são nada. E não sendo nada representam um tudo, um todo presente. O meu desejo em me aceitarem e darem espaço para que o meu rabo coubesse ao lado dos rabos deles, sentados naquele banco.
A palavra existia apenas quando existia essa vontade. Palavra também ela sem conteúdo, nem profundidade. Uma observação. Um entre-dentes. Qualquer coisa. Quebrando o silêncio. Mas não o silêncio exterior. Quebrando o silêncio interior do lago de pensamentos em que nos envolviamos.
Com os velhos caminha o silêncio. Pacífico. Natural. Sem esforço. E as histórias. O seu oposto. O repetir, em eco, o mesmo, infinitamente.

O meu amor aos velhos é depois do amor-Édipo e do amor-colo-pão-com-manteiga-mãe, o amor que mais me aconchega. Primordial. Colado ao corpo. Interior e inexplicável. Um amor que me moldou a memória. Que me treinou a memória a esquecer. Vejo e esqueço. Oiço e esqueço. Leio e esqueço. Dizem-me e esqueço. Criando a possibilidade de ouvir repetetidamente as mesmas histórias. Para que possa ser presente. Para que possa ser como a primeira vez. Na vigésima. E em consequência possa dizer que sou boa a guardar segredos.  

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Vivaldi

American Portraits - Lasse Damgaard


























- Abre.
- Fecha...
- Abre!
- Fecha.
- Abre!
- Fecha!
- Respondo?
- Não, não respondas.
- Não?
- Não!
- Mas porquê?
- Porque não.
- Não?
- Não. Não respondas.

O homem olha na mulher. Ambos estão vestidos de preto. Ao fundo uma parede preta. Os pés nus pousam num chão preto baço. Baço de uso. Baço de passos. Baço de gente que o pisou. E bateu. E caiu. E socou. Baço como a pele de um velho fumador. Como os olhos de um pescador. Como a boca do homem que, sentado ao lado da mulher, lhe diz para não responder.

- Mas porque queres tu responder?
- Não sei.
- Não sabes?
- Não.
- Se não sabes, porque insistes?
- Está vento.
- Sim, está.
- Ontem estava um sol muito dourado, viste?
- Queres responder porque lhe sentes a falta?
- Quase cegava...
- Sentes vontade de o cheirar?
- Fazia lembrar dias de vindima. As tardes nas vinhas. Com as mãos cheias de grandes cachos de uvas. A sentirme-me bacante sem túnica.
- Não o achas egoísta?
- Foi há muito tempo... o cheiro que vinha quando os homens abriam as marmitas. As mãos deles. Rudes. Os olhos de desejo em mim. Rapariga...

A mulher ri. Dá gargalhadas sonoras. Vibrantes. As mãos são abandonadas sobre o colo. No rosto espelha-se alegria. E loucura.

- Ele usa-te. É desonesto.
- Falaste em cheiros?
- Não que o faça por mal. Mas usa. E desculpa-se com essa mesma desculpa. Um pleonasmo?
- Uma anáfora. Sou uma anáfora. Falaste em cheiros?
- É utópico. E possui a tua mesma utopia. A da entrega. Plena. Dois seres em comunhão. Em satisfação. Em bastarem-se. Por si só. Pela existência e presença um do outro.
- Porque nos lembramos de coisas tão antigas?
- Como se pudessemos sentir-nos plenos apenas pelo facto de termos alguém. Se é que temos...
- Hoje lembrei-me da Silvestra e em como ela fazia render o peixe na costura de um cueiro. Uma história mais antiga que eu. Contada pela minha mãe.
- Ele não te ama. Não pode.
- Não conheci a Silvestra. Não podia. Ou podia, mas não a conheci. Mas sempre a imaginei de cabelo escuro encrespado. Gordinha. Roliça. Generosa nos seios. E atrevida. Quando criança ranhosa e chorona. Com ranho a escorrer. A nascer em nós vontade de afagá-la. Convencional? Quem pode não amar uma criança ranhosa?
- Em ti tudo é fugaz. Aceita-o. Se o fizeres serás mais feliz.
- Cala-te.

Calou-se.
Levantou-se e saiu. A mulher deixada sentada iniciou o processo de decomposição. Foi enterrada numa tarde de domingo. Todos comeram bem.

Lixo

Alphonse Mucha - Winter Night



























Saudade, vai-te embora
Do meu peito tão cansado
Leva para bem longe este meu fado...
- Já está. Dê o seu jeito agora.
Reparaste que não te olho quando te lavas? Para que te sintas bem. Mais confortável. E já chamo à tua vagina de rata. De ratinha. Vagina é asséptico. Contigo quero carinho. Quero afecto. Quero intimidade. E nomes. E coisinhas. E ouvir o teu Francisco José em canções românticas de amores perdidos e impossíveis.

Olhou-se no espelho. Trauteava uma canção. Imaginou-o por trás. Por trás dela. A olhá-la no espelho. A olhar-lhe no traço dos olhos. E a deixar de olhar. Para se perder no decote e deste no olhar. 


Porque será que me tens
Na poeira dos teus passos?

Olhei na tua direcção mas tinhas partido. Sobre a mesa alguém deixou algo escrito.

Um texto é sempre escrito ao abrigo de um passado.

P-A-N-E-L-E-I-R-O-S

                         C-O-B-A-R-D-E-S
                                                                PANELEIROS
                                                                                                                          COBARDES
                                                                                                                                                           Paneleiros
                                                                                Cobardes

Estou farta de paneleiros. E de gente cobarde. Paneleiros que querem saber onde pisam. Pisarão merda. Não há como escapar. De vez em quando pisa-se merda. Merda de pombo. Merda de vaca. Merda de ovelha. Merda de cão. Todos nós pisamos merda. Paneleiros que sabendo onde pisam acabam pisando na merda do lado fugindo da merda da frente. Paneleiros que tem medo de viver. E de foder. E de se dizerem paneleiros. E cobardes. Gente não-autêntica. Não-natural. Gente simétrica. Gente limpinha. Gente de dentes lavados e cabelos escovados. Gente de merda. Merda como a merda que pisa o paneleiro.

Façamos uma farra. Uma farra de droga, sexo, álcool e comida. Morrerei a rir-me de ti e tu de mim.

Agarrei o papel e guardei-o. Junto aos do mendigo.

Pessoas de vento perfumado

Marina Abromovic and Ulay



















A gata miadeira. Mia. Mia. Mia.
A gata miadeira. Mia.

Gata porque a quero gata. Gata porque a sinto gata. Fêmea. Mia. E mia. E mia.

Gata no telhado vizinho. Deitada. Olhando para cima. Para a minha janela. Gata antiga. Vizinha de outros gatos. Desaparecidos. Gata que se faz sentir pela manhã. Ao acordar. Com o sol a pique e ao jantar. Gata que mia. Que mia ao deitar. Gata branca e preta de olhar manipulador em mim. Gata que me fala e me acompanha em passeios pelos telhados. Mando-me e salto para seu lado. Enrolada nas minhas pernas e ela nas suas, falamos de peixe, de castanho e madeira. Falamos da Suécia e da brincadeira. E miamos. Miamos as duas. Eu gata morena. Ela gata branca. Falamos dos filhos. Ela dos delas. Magros e franzinos. Eu da minha velha. Faladora e surda.

A gata Evelina, ou Ermelinda, ou Ermengarda. Eva, não. Nunca! Gata com nome de É. Mas um É sonante. E comprido. E cheio. De elevar a mão e chamar. Ééé... Porque sim. Porque a gata que podendo ser um gato tem de ter um nome de ser. Um nome de existir. De estar. É. É gata. É eu. É nós. Gata que nunca deixa de estar. De estar sobre o telhado. De olhar na minha janela. De existir com o corpo dobrado. Gata-telha. Habitante de argila. Vizinha de ramos secos, de um carro de plástico vermelho e de cacos que contei nas noites em que te pensei.

A gata tem fome? Mas sempre com fome?
E rechonchuda está!
Questiono-me se a comida não a sacia? E não saciando porque mia tanto?
Que procura esta gata?

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Uma malha caída nas meias

Sigga Bjorg

























Ainda resta areia nos sapatos que não guardei e pousei a um canto. A roupa já foi lavada e engomada. Alguma voltada a usar. Outra guardada numa gaveta ou armário. Limpa. Sem cheiros. Sem manchas ou nódoas. A escova dos dentes está no copo e os livros arrumados. A esferográfica na gaveta. O shampoo na banheira. E as malas ao lado da cómoda. Voltei. Regressei. Ou vim. Cheguei.

Abro a janela. Vento. Ar. Luzes. Cidade. Abro a janela e lembro-me das vezes em que fechei os olhos para pensar. E pensar-te. Em que fechei os olhos para gemer em ti. Dentro e fora. Em redor. E o tempo passa e parece que foi há muito tempo. Foi ontem. Apenas, ontem. Mas um ontem retorcido em presente e em passado. Um ontem que está aqui, presente a nosso lado. Uma ânsia. Uma repetição. Bis. Bis. Bis. Quero-te. Bis. Bis. À exaustão.

Há um amor escondido que teima em revelar-se. E um sorriso de criança que me entristeceu. Não porque seja triste. Não porque não seja bela. Harmonioso. Provocador de ternura. E cutchi-cutchi. Porque... Porque há prazeres que sempre me neguei. Aos trinta aprendi o sol no corpo. Aos vinte aprendi o beijo. Aos quarenta não sei o que aprenda. Mas apetece-me aprender tudo. Aprender como da primeira. Sem saber. Soletrando.


Aceitar que corro numa direcção. E que não vejo. Aceitar que sou ridícula quando manipulo. E controlo. Nada. E... absurda, completamente despropositada nesta tentativa vã de gerir o ingerível.


Tento escrever. Escrever sobre mulheres. Crianças. Velhos. Escrever sobre coelhos, Com dois dentes. E cabras de cinco patas. Tento descrever as cores das faces dos homens anónimos. Escrever sobre a senhora que para na esquina. Posso chamá-la Eulália. Ou Maria. Escrever sobre o homem que dorme a meu lado. De pernas compridas e enroladas em mim. Tento escrever e somente...  


Tento escrever sobre amor. Profundo. Na impossibilidade de te dizer que te amo. Que me quero perder. Que a vertigem é grande. Que não quero saber e que não vejo saída. Que eu sou pobre e tu és rico. Ou, tu sapo e eu princesa. Que só nas histórias infantis é para todo o sempre.


E foi. Um texto que se foi. Que deixou de ser. Mas já está escrito. É lançar o pião. Ou roda. Ou não roda. E foi.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Reprodutor

Hyphen - 1991 - Jenny Saville



















A Amália canta nos caracóis da minha cabeça. Os que querem ser comidos pela tua boca. A Amália, do meu sorriso, treme perante camiões e camionistas. A Amália que não entendo. E entendo. E volto a não entender. É tua. Ou será. É tua. Porque não pode escolher.


Paramos e não lembro. Que lembras tu que eu não saiba já? Há um silêncio entre nós. Bom. Pesado. Quente. Um silêncio apertado. Escuro. Sinuoso, por vezes. Um silêncio profundo. De olhos castanhos e lábios que lentamente se movem como vento nos cabelos. Uma mão de homem. Uma mão de rapaz. Um filho. Um pai. Um homem. Um companheiro-amante-amigo-cúmplice-e-tudo-o-mais-que-quisermos-inventar.
 
As pernas magritas enfiadas nuns calções às riscas. Os joelhos magoados de subir e descer o velho choupo do quintal. Os dedos de unhas roídas agarram um boné coçado que calmamente enfia na cabeça. Com passo rápido afasta as fitas da porta da entrada e dirige-se à mulher sentada numa cadeira.

- Mãe...
- Sim, filho?
- A mãe vai morrer?
- Disparate...
- Mas vai? Vai ou não vai morrer?
- Oh filho...
- Preciso de saber se a mãe vai morrer. Como o avô.
- Oh filho... todos nós morremos. Mas porque perguntas isso? Que andas tu a magicar?
- Nada mãe. Nada. É só para saber.
- Mas saber porquê?
- Porque não quero que a mãe parta sem lhe contar...
- Mas contar o quê?
- Contar que quando subo ao choupo e olho no céu me sinto grande. Mais grande que no chão. Aqui. Que quando a mãe me chama para regressar a casa eu não gosto, mas que naquele dia que foi à vila e não havia ninguém para me chamar eu fiquei triste. Que o camião que me deu é fraquinho, mas que eu o reforcei com um arame como o Tio João disse para eu fazer. E que fiquei contente por ele ter ficado bom. Que não gosto que a mãe fale de mim às velhas da aldeia e que gosto muito de vê-la com o vestido azul clarinho. E queria pedir-lhe para não me obrigar a vestir as calças verdes. Picam... e pedir-lhe para que não morra já porque vou sentir a sua falta e... quem me dá de comer?
- Cala-te rapaz. Que tristeza de conversa. Vai lavar as mãos.
- Tabém. Mas amanhã tenho mais. Tenho mais para lhe contar. Sabia que a figueira do Ti Luís já está carregadinha de figos? E são melhores que os nossos. Porque será? Sabe, mãe? Porque será?

domingo, 30 de junho de 2013

Batatas fritas frias

Diane Arbus


























Ligo mas ninguém atende. Volto a ligar mais tarde. Disponham da minha vida como eu disponho da dos outros e andaremos aqui em círculos e tentativas de risos meus. Risos porque perder é morte. Rio. Rio. Rio enquanto abro as pernas e urino. De pé. Junto à árvore desnuda. O plátano que ontem estava junto à cadeira onde te sentei não faz parte desta história. No meu peito secaram-se as borbulhas. Agora resta esta pele de velha pescadora.

As putas das manhãs. As putas das minhas manhãs. As filhas da puta das minhas manhãs. Entornam-se na minha cabeça e deixam-me o cabelo com ervas e descampados à porta de casa. Estava sol naquele dia. Estava sol e eu deixei aquele lugar onde te conheci. Comi ervas secas enquanto te falava e calejei os calcanhares no cimento quente. De uma janela vinha luz. Sentei-me no passeio olhando os meus pés nas manhãs que se fizeram noite. És ignorante das pedras que apanhei com os dedos. Saberás dos tsunamis?

Eu não pedi isto. Tu pediste? Pois, não paguemos. Comamos e não paguemos a conta. Fujamos no final. À polícia. Aos ladrões. Ao mundo. Por um dia. Ou dois. Por uma hora. Ou um minuto. Na minha cabeça. E no ventre. No meu ventre. É a ele que tudo torna. E retorna. Às minhas tripas uterinas.

Tenho um pai amarelo. Está deitado sob trezentos quilos de terra. Ou serão mais? Pergunto-me quanto pesa a terra sob o corpo. Quanto pesa? Diz-me quanto pesa. Diz-me. Há uma obsessão em respostas e uma outra em ignorá-las. Baralhamos as cartas e voltamos a dar porque o jogo que me saiu não tinha Ases. E o teu? Era bom? Lamento... mas... de tanto me chamarem umbigo tornei-me buraco negro.


Está quieta. Fica quieta. Aí. Mantém-te direitinha. De pé. Quieta.

Ai.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Chaminés de pedra

Casino da Figueira, autor desconhecido

















Há uma janela do lado direito da cena. E uma outra ao centro. Ambas dão para um céu de junho chuvoso. Umas aves, talvez gaivotas, passam a voar. Talvez ao fundo apareçam telhados de casas, edifícios, igrejas, janelas, antenas e gruas. Talvez. Talvez não. Talvez haja uma ponte. E uns montes de pedra com arvoredo. Umas ruínas e um padre que reza uma missa. Um missal aberto numas mãos de dedos finos e ferrugentos. Porque há mãos que oxidam. E as que teimam em paralisar no tempo. E no espaço.


Falam-me em entrega. Os idiotas falam-me em entrega! Os imbecis falam-me em entrega! Porque raio todos me falam em entrega? E em satisfação. Em satisfazermo-nos como cão que sacia a sede. 

E eu tola. Eu crente. Eu na tentativa de fazer correr o sangue nas veias, dou a mão e corro. Deem-me um frigorífico e um fogão. Uma estante para colocar livros de lombada bonita. Uma bicicleta e um casaco. Dêem-me um telhado e um recibo de salário. Um patrão e um chefe. Deem-me ambição e angústia. Férias na praia e máquina fotográfica. Dêem-me tudo aquilo que não me espelha para que eu possa sentir-me... pertencente.

Ele disse odiar-me. E eu senti. Senti que posso ser odiada. E que nesse ódio posso sentir o amor. O amor que me é dedicado. Como um banho de imersão. Com espuma e sabonete de verbena. Meu amor, perdoa-me! Perdoa-me por ser este barco à deriva. E peço perdão sem arrependimento. Sou uma crente de cemitérios. E de choros. Sou crente de mensagens em lábios que quero meus. Só por um minuto. Ou dois. Concede-me uma vida e eu mostro-te o medo e a angústia de me sentar aqui nesta relva, vestida de disponível e de perna aberta.

Não rias. Falo sério. Não rias! Olha-me e vê. Vês os meus olhos? Raiados de álcool. Raiados de passado. Não brinco... Brincarei com a tua piloca. Enrolo-a no dedo e faço dela um caracol. Chupo-a. E sugo-a. Quero-a pequena. Pequena para brincar. Pequena caniche. Pequena mole. Pequena. E imensamente grande a rebentar. Como o meu desejo por ti. Por vezes devorador. De gruta e caverna. De peito e vagina. De colo e pés. Por vezes apaziguador. De sorriso tranquilo e sensualidade nos dedos. Lábios.

Está difícil mas é um começo. Está difícil. Tudo isto está difícil. Que faremos quando a noite se puser e estiver escuro? Que faremos? Diz-me amor, que faremos?