quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Vivaldi

American Portraits - Lasse Damgaard


























- Abre.
- Fecha...
- Abre!
- Fecha.
- Abre!
- Fecha!
- Respondo?
- Não, não respondas.
- Não?
- Não!
- Mas porquê?
- Porque não.
- Não?
- Não. Não respondas.

O homem olha na mulher. Ambos estão vestidos de preto. Ao fundo uma parede preta. Os pés nus pousam num chão preto baço. Baço de uso. Baço de passos. Baço de gente que o pisou. E bateu. E caiu. E socou. Baço como a pele de um velho fumador. Como os olhos de um pescador. Como a boca do homem que, sentado ao lado da mulher, lhe diz para não responder.

- Mas porque queres tu responder?
- Não sei.
- Não sabes?
- Não.
- Se não sabes, porque insistes?
- Está vento.
- Sim, está.
- Ontem estava um sol muito dourado, viste?
- Queres responder porque lhe sentes a falta?
- Quase cegava...
- Sentes vontade de o cheirar?
- Fazia lembrar dias de vindima. As tardes nas vinhas. Com as mãos cheias de grandes cachos de uvas. A sentirme-me bacante sem túnica.
- Não o achas egoísta?
- Foi há muito tempo... o cheiro que vinha quando os homens abriam as marmitas. As mãos deles. Rudes. Os olhos de desejo em mim. Rapariga...

A mulher ri. Dá gargalhadas sonoras. Vibrantes. As mãos são abandonadas sobre o colo. No rosto espelha-se alegria. E loucura.

- Ele usa-te. É desonesto.
- Falaste em cheiros?
- Não que o faça por mal. Mas usa. E desculpa-se com essa mesma desculpa. Um pleonasmo?
- Uma anáfora. Sou uma anáfora. Falaste em cheiros?
- É utópico. E possui a tua mesma utopia. A da entrega. Plena. Dois seres em comunhão. Em satisfação. Em bastarem-se. Por si só. Pela existência e presença um do outro.
- Porque nos lembramos de coisas tão antigas?
- Como se pudessemos sentir-nos plenos apenas pelo facto de termos alguém. Se é que temos...
- Hoje lembrei-me da Silvestra e em como ela fazia render o peixe na costura de um cueiro. Uma história mais antiga que eu. Contada pela minha mãe.
- Ele não te ama. Não pode.
- Não conheci a Silvestra. Não podia. Ou podia, mas não a conheci. Mas sempre a imaginei de cabelo escuro encrespado. Gordinha. Roliça. Generosa nos seios. E atrevida. Quando criança ranhosa e chorona. Com ranho a escorrer. A nascer em nós vontade de afagá-la. Convencional? Quem pode não amar uma criança ranhosa?
- Em ti tudo é fugaz. Aceita-o. Se o fizeres serás mais feliz.
- Cala-te.

Calou-se.
Levantou-se e saiu. A mulher deixada sentada iniciou o processo de decomposição. Foi enterrada numa tarde de domingo. Todos comeram bem.

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