segunda-feira, 8 de julho de 2013

Uma malha caída nas meias

Sigga Bjorg

























Ainda resta areia nos sapatos que não guardei e pousei a um canto. A roupa já foi lavada e engomada. Alguma voltada a usar. Outra guardada numa gaveta ou armário. Limpa. Sem cheiros. Sem manchas ou nódoas. A escova dos dentes está no copo e os livros arrumados. A esferográfica na gaveta. O shampoo na banheira. E as malas ao lado da cómoda. Voltei. Regressei. Ou vim. Cheguei.

Abro a janela. Vento. Ar. Luzes. Cidade. Abro a janela e lembro-me das vezes em que fechei os olhos para pensar. E pensar-te. Em que fechei os olhos para gemer em ti. Dentro e fora. Em redor. E o tempo passa e parece que foi há muito tempo. Foi ontem. Apenas, ontem. Mas um ontem retorcido em presente e em passado. Um ontem que está aqui, presente a nosso lado. Uma ânsia. Uma repetição. Bis. Bis. Bis. Quero-te. Bis. Bis. À exaustão.

Há um amor escondido que teima em revelar-se. E um sorriso de criança que me entristeceu. Não porque seja triste. Não porque não seja bela. Harmonioso. Provocador de ternura. E cutchi-cutchi. Porque... Porque há prazeres que sempre me neguei. Aos trinta aprendi o sol no corpo. Aos vinte aprendi o beijo. Aos quarenta não sei o que aprenda. Mas apetece-me aprender tudo. Aprender como da primeira. Sem saber. Soletrando.


Aceitar que corro numa direcção. E que não vejo. Aceitar que sou ridícula quando manipulo. E controlo. Nada. E... absurda, completamente despropositada nesta tentativa vã de gerir o ingerível.


Tento escrever. Escrever sobre mulheres. Crianças. Velhos. Escrever sobre coelhos, Com dois dentes. E cabras de cinco patas. Tento descrever as cores das faces dos homens anónimos. Escrever sobre a senhora que para na esquina. Posso chamá-la Eulália. Ou Maria. Escrever sobre o homem que dorme a meu lado. De pernas compridas e enroladas em mim. Tento escrever e somente...  


Tento escrever sobre amor. Profundo. Na impossibilidade de te dizer que te amo. Que me quero perder. Que a vertigem é grande. Que não quero saber e que não vejo saída. Que eu sou pobre e tu és rico. Ou, tu sapo e eu princesa. Que só nas histórias infantis é para todo o sempre.


E foi. Um texto que se foi. Que deixou de ser. Mas já está escrito. É lançar o pião. Ou roda. Ou não roda. E foi.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Reprodutor

Hyphen - 1991 - Jenny Saville



















A Amália canta nos caracóis da minha cabeça. Os que querem ser comidos pela tua boca. A Amália, do meu sorriso, treme perante camiões e camionistas. A Amália que não entendo. E entendo. E volto a não entender. É tua. Ou será. É tua. Porque não pode escolher.


Paramos e não lembro. Que lembras tu que eu não saiba já? Há um silêncio entre nós. Bom. Pesado. Quente. Um silêncio apertado. Escuro. Sinuoso, por vezes. Um silêncio profundo. De olhos castanhos e lábios que lentamente se movem como vento nos cabelos. Uma mão de homem. Uma mão de rapaz. Um filho. Um pai. Um homem. Um companheiro-amante-amigo-cúmplice-e-tudo-o-mais-que-quisermos-inventar.
 
As pernas magritas enfiadas nuns calções às riscas. Os joelhos magoados de subir e descer o velho choupo do quintal. Os dedos de unhas roídas agarram um boné coçado que calmamente enfia na cabeça. Com passo rápido afasta as fitas da porta da entrada e dirige-se à mulher sentada numa cadeira.

- Mãe...
- Sim, filho?
- A mãe vai morrer?
- Disparate...
- Mas vai? Vai ou não vai morrer?
- Oh filho...
- Preciso de saber se a mãe vai morrer. Como o avô.
- Oh filho... todos nós morremos. Mas porque perguntas isso? Que andas tu a magicar?
- Nada mãe. Nada. É só para saber.
- Mas saber porquê?
- Porque não quero que a mãe parta sem lhe contar...
- Mas contar o quê?
- Contar que quando subo ao choupo e olho no céu me sinto grande. Mais grande que no chão. Aqui. Que quando a mãe me chama para regressar a casa eu não gosto, mas que naquele dia que foi à vila e não havia ninguém para me chamar eu fiquei triste. Que o camião que me deu é fraquinho, mas que eu o reforcei com um arame como o Tio João disse para eu fazer. E que fiquei contente por ele ter ficado bom. Que não gosto que a mãe fale de mim às velhas da aldeia e que gosto muito de vê-la com o vestido azul clarinho. E queria pedir-lhe para não me obrigar a vestir as calças verdes. Picam... e pedir-lhe para que não morra já porque vou sentir a sua falta e... quem me dá de comer?
- Cala-te rapaz. Que tristeza de conversa. Vai lavar as mãos.
- Tabém. Mas amanhã tenho mais. Tenho mais para lhe contar. Sabia que a figueira do Ti Luís já está carregadinha de figos? E são melhores que os nossos. Porque será? Sabe, mãe? Porque será?