domingo, 8 de setembro de 2013

Moldura dourada

Gerhard Richter - Drei Geschwister

























A minha mãe aquece peras no microondas. Gosta de comê-las mornas. Semi-transparentes. Maduras a libertar o suco. O meu pai pedia para lhe aquecerem o pudim. A água. O arroz doce. Os iogurtes. A garganta sofria. Dizia.

Eu sonho em dormir em camas de princesas-ervilha, subtituindo os colchões por mantas e edredons que me cubram o corpo. Metros e metros de roupa. Metros e quilos. E eu por baixo. Quente. Metros, a peso sobre mim. Sentido o esborrachar. Quente. A arder. Dormente.

O frio liga-me aos velhos. Tal como a morte. Sentir que neles há sabedoria para aceitá-la. Algures. Num recanto do pensamento. Do ser. Querer pensar que assim é. Que já ponderaram e chegaram a conclusões que a mim ainda estão interditas. Sem perguntas. Sinto. Como enfrentar os dias? Como enfrentar os últimos dias? Saberão que são os últimos? Como estar presente quando o futuro é curto?

Sentava-me no banco tosco de madeira feito provavelmente de um toro roubado a uma linha férrea. Ladeada pelos três envolvia-me em histórias. Em mãos calejadas. Em mãos de veias salientes e unhas escuras e amarelecidas. Em mãos de olhos e pele gastos pela vida. Mãos que agarravam nos cajados de madeira trabalhados à navalha. Mãos que se faziam sentir pelo meu olhar. Criaram-me memórias. Mãos que se faziam sentir quando me levantava e recebia bofetadas nas costas. Chapadas nas pernas. Cajadadas no rabo. “Vai. Vai que se faz tarde.” O afecto demonstrado por um sentir forte. Na ausência de palavras. Na ausência de retórica. Na ausência de saber.

Emprestavam-me o cajado para que eu à semelhança deles pudesse mover as pedrinhas no chão. Com a ponta do cajado empurrava uma pedra para junto de outra. Sem método ou pensamento. Escavava buracos que depois tapava. Ou não. Professores do nada. Do fazer nada, ocupando-nos com qualquer coisa. Aluna das pequenas coisas que são nada. E não sendo nada representam um tudo, um todo presente. O meu desejo em me aceitarem e darem espaço para que o meu rabo coubesse ao lado dos rabos deles, sentados naquele banco.
A palavra existia apenas quando existia essa vontade. Palavra também ela sem conteúdo, nem profundidade. Uma observação. Um entre-dentes. Qualquer coisa. Quebrando o silêncio. Mas não o silêncio exterior. Quebrando o silêncio interior do lago de pensamentos em que nos envolviamos.
Com os velhos caminha o silêncio. Pacífico. Natural. Sem esforço. E as histórias. O seu oposto. O repetir, em eco, o mesmo, infinitamente.

O meu amor aos velhos é depois do amor-Édipo e do amor-colo-pão-com-manteiga-mãe, o amor que mais me aconchega. Primordial. Colado ao corpo. Interior e inexplicável. Um amor que me moldou a memória. Que me treinou a memória a esquecer. Vejo e esqueço. Oiço e esqueço. Leio e esqueço. Dizem-me e esqueço. Criando a possibilidade de ouvir repetetidamente as mesmas histórias. Para que possa ser presente. Para que possa ser como a primeira vez. Na vigésima. E em consequência possa dizer que sou boa a guardar segredos.  

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